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O plano era se encontrar em Altamira, Brasil, e viajar 1.000 milhas (1.600 quilômetros) pelo norte da Amazônia como uma espécie de tribunal popular. Os juízes tomariam depoimentos durante 10 dias, como uma delegação de averiguação das Nações Unidas, e apresentariam suas conclusões no 10º Fórum Social Pan-Amazônico na cidade de Belém.
Eles vieram sob a bandeira do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, promovendo um movimento legal baseado na premissa de que a natureza – florestas e rios, animais selvagens e ecossistemas – tem direitos legais inerentes de existir e se regenerar, assim como os seres humanos possuem direitos humanos por virtude de sua existência.
E assim esses advogados e defensores da justiça se reuniram em uma noite quente de julho em uma chácara localizada numa longa estrada de terra vermelha a 30 minutos de Altamira para participar de um caso audacioso: A Amazônia, “uma entidade viva sob ameaça”.
Eles iriam se reunir com povos indígenas e comunidades tradicionais cujas relações íntimas com a Amazônia lhes permitiam falar em nome da floresta. Eles fariam perguntas que ninguém mais estava realmente fazendo e ouviriam do jeito que ninguém estava realmente ouvindo, esperando mudar a maneira como o mundo funciona.
A Amazônia
Chegando na chácara em Altamira, Cormac Cullinan sentiu uma descarga de adrenalina ao anoitecer neste pequeno pedaço da Amazônia. A não ser pelo passaporte e documentos de viagem enfiados no bolso da camisa, ninguém iria adivinhar que ele estava viajando há dois dias seguidos.
Homens e mulheres da bacia do rio Xingu percorreram longas distâncias desde seus sítios e vilas de pescadores para se encontrar com ele e outros membros do tribunal. Um senhor mais idoso, praticante de agroflorestagem, usava sapatos de couro preto, calça social e uma camisa oxford branca engomada – bastante perceptível já que todo o resto na varanda atrás da casa estava levemente empoeirado com a poeira laranja-ferrugem da estação seca.
Ativista antiapartheid durante sua juventude, Cullinan hoje em dia é mais conhecido como o autor de “Wild Law”, um livro seminal de 2002 que defende os direitos da natureza que desde então o tornou um líder desse movimento. Ele é o fundador do mais antigo escritório de advocacia ambiental da Cidade do Cabo e passa a maior parte de seu tempo defendendo os direitos das comunidades locais e combatendo projetos ambientalmente destrutivos através de leis convencionais de proteção ambiental – um trabalho que Cullinan chama de “tirar bebês do rio”, referindo-se a história de Moisés.
Mas sua verdadeira paixão – o motivo dele estar no Brasil – é “ir a montante” para parar “o porquê de bebês estarem sendo jogados no rio em primeiro lugar”. Para Cullinan, as leis ao redor do mundo são baseadas em uma lógica falha que se tornou popular durante a Revolução Industrial, talvez mais bem caracterizada pela noção apresentada por Francis Bacon no final do século 16 de que a natureza deveria ser “torturada” ou “colocada numa mesa de tortura” para revelar seus segredos. Essa lógica pressupõe que os seres humanos são separados da e superiores à natureza. Mas a ciência moderna refuta essa ideia. A física quântica mostra que o universo é um todo singular composto de várias partes interconectadas, e Cullinan frequentemente compara a humanidade a uma folha de uma árvore da vida. Ainda assim, os sistemas legais continuam presos a pensamentos como o de Bacon, e isso, diz ele, foi o que levou ao crescente perigo ecológico no mundo.
A título de apresentação aos moradores do Xingu reunidos nesta úmida noite de verão, Natalia Greene, ambientalista equatoriana, explicou que o tribunal veio para tomar depoimentos e avaliar as violações a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, documento adotado durante uma conferência popular de 2010 em Cochabamba, Bolívia, após uma decepcionante cúpula climática da ONU em Copenhague um ano antes.
“Queremos que suas vozes sejam ouvidas”, disse ela aos homens e mulheres sentados ao redor dos juízes. Depois disso, por duas horas, eles ouviram.
Uma mulher relatou um aumento na presença e mordidas de cobras em sua comunidade ribeirinha depois que uma barragem mudou a ecologia do rio. Outro morador disse que os produtos químicos lixiviados das operações de prospecção de minas mataram as árvores endêmicas de açaí e castanheira na floresta. O senhor de camisa branca descreveu o pesadelo do desmatamento.
“Meu nome é Idalino Nunes de Assis”, disse ele, segurando uma pilha de documentos que havia dado entrada junto ao governo para obter a titulação das terras onde ele e cerca de 240 outras famílias praticam agroflorestagem de subsistência, integrando árvores e arbustos em seus cultivos. Sua comunidade colhe nozes e frutas e cultiva algumas culturas sem danificar a floresta, disse ele. Mas ao redor dessas famílias, madeireiros, garimpeiros e fazendeiros tem invadido a selva, até construindo uma pista de pouso em uma área remota para trazer suprimentos disfarçadamente e remover as riquezas da floresta.
“Queremos o título da terra para proteger a floresta – queremos que os fazendeiros e madeireiros sejam retirados”, disse Nunes em voz baixa e calma. “Não chamo o que eles fazem de progresso, chamo de crimes sociais e ambientais.”
Enquanto Cullinan ouvia as pessoas falarem sobre os danos sofridos em pequenas comunidades e povoados, ele ouvia estas pessoas descrevendo forças globais. Não era apenas Jair Bolsonaro, presidente de direita do Brasil, facilitando a presença de garimpeiros, madeireiros e caçadores ilegais na selva ao reduzir a aplicação das leis de proteção ambiental. Havia forças ainda maiores envolvidas. Megabarragens e minas foram aprovadas e apoiadas por políticos de todo o espectro político no Brasil. E os sistemas jurídicos nacionais e internacionais não estavam apenas permitindo que a erosão da Amazônia acontecesse – eles a estavam facilitando.
“Me tornei ativista dos direitos da natureza e juiz do tribunal porque percebi que não podemos resolver os problemas que enfrentamos com o direito ou legislação ambiental, porque os sistemas jurídicos como um todo são parte do problema”, disse ele ao grupo. Esses sistemas veem a floresta como um conjunto de recursos naturais para exploração humana. “Essa não é a perspectiva deste tribunal”, disse ele.
Ouvi Cullinan atentamente e fiquei maravilhada com a maneira como ele conseguia marcar presença em mundos jurídicos tão diferentes. Passei 12 anos praticando advocacia antes de abandonar minha carreira para me tornar jornalista cobrindo as mudanças climáticas, e agora me via questionando aspectos fundamentais da minha formação. Eu fui treinada como advogada para ver “recursos naturais” como objetos sob a lei, e aqui estava outro advogado – um eminente praticante de direito ambiental – dizendo a esse grupo de moradores da Amazônia que o que me ensinaram era parte do problema, e estava claro que todos concordavam com ele. Se o treinamento arraigado em mim tivesse levado o planeta a uma crise ecológica, eu me perguntava, Cullinan e essas comunidades estavam apontando para uma saída?
Indo ‘A Montante,’ Descendo o Xingu
Descendo o rio Xingu em alta velocidade em uma canoa motorizada na manhã seguinte, Cullinan usou seu celular para tirar fotos de galhos de árvores mortas apontando para o céu fora da água, como se fosse uma última tentativa de vida. Além das margens do rio, a selva viva, uma espessa camada de verde, cobria as colinas ondulantes.
No primeiro dia completo da viagem, os juízes estavam indo visitar uma comunidade ribeirinha devastada por Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica do mundo. Em uma luta de três décadas, as comunidades locais se opuseram veementemente à sua construção, mas sem sucesso: ela foi concluída em 2016.
Esta parte do rio é conhecida como a Volta Grande, que já foi um trecho do rio de correnteza forte, rico em peixes e outros animais selvagens. Hoje, a Volta Grande se assemelha mais a um lago.
Esta comunidade de pescadores e pescadoras remonta a gerações. Eles entendiam os ciclos do rio e sabiam que a água subia e descia com as estações – a estação da cheia coincidia com o amadurecimento de frutas como goiabas e figos na floresta. A fruta madura e doce caia na água, servindo de alimento para peixes em época de desova, tartarugas e outras formas de vida aquática. Mas quando a Norte Energia construiu a barragem, esse ciclo parou, deixando a maior parte de Volta Grande num estado permanente de inundação. Pelo menos um quarto da vida aquática do rio diminuiu ou desapareceu.
Pescadores que pescavam centenas de quilos de peixe por semana agora pescam tão poucos peixes que sequer conseguem cobrir os custos do combustível. “Éramos uma comunidade de pescadores, mas hoje não há mais peixes”, disse um jovem de chinelos e uma jaqueta azul aberta que recebeu os juízes num povoado na margem do rio. “Hoje, o rio não tem vida e nós não temos vida.”
Enquanto Cullinan ouvia este jovem e mais seis pessoas, quatro homens e duas mulheres, seus pensamentos se alternavam entre os dois mundos jurídicos que ele habita. O represamento do rio havia matado os peixes e prejudicado essas pessoas que faziam parte do ciclo de vida do rio. Ele se perguntou se o governo e a Norte Energia, a empresa de energia responsável pela barragem, tinham feito algo para ajudar este e outros povoados afetados.
“Na maioria dos lugares, se o governo obriga você a se mudar e você perde seu sustento, eles têm que compensá-lo para que você possa ganhar o mesmo sustento. Isso foi prometido aqui?” ele perguntou.
“Eles simplesmente entraram atropelando”, disse um homem mais velho de boné, shorts e camisa de colarinho azul. 121 famílias moravam no assentamento original, mas muitas delas foram separadas e realocadas, algumas para casas de concreto no centro da cidade de Altamira, a quilômetros do rio.
“Me dê um carro e eu não sei dirigir”, disse o homem. Ele tinha um leve tremor no lado direito. “Mas me dê um remo, e eu posso ganhar meu sustento.”
Felício Pontes Jr., procurador federal brasileiro e membro do tribunal, encostou-se numa árvore enquanto ouvia. Ele já havia estado no povoado antes e conhecia muito bem a história de Belo Monte. O processo de destruição começou com Belo Monte, pensou consigo mesmo, mas o pior ainda pode estar por vir.
Naquela Noite, um Diagrama no Quadro Branco: Dividir e Conquistar
Pontes foi professor de direito na Universidade da Amazônia em Belém antes de ingressar como promotor no Ministério Público Federal do Brasil em 1997.
Ele moveu 15 ações contra a Eletronorte, operadora de Belo Monte, por irregularidades e ilegalidades no licenciamento e desenvolvimento da barragem, incluindo uma ação baseada em violações dos direitos da natureza. O juiz não estava pronto para abraçar esse tipo de pensamento novo e descartou o processo, afirmando que não entendia o conceito. Pontes tentou outras teorias legais baseadas em estudos que mostravam que a capacidade de geração de energia da barragem chegaria, no máximo, a um terço do que a empresa alegava.
“Agora, a empresa de mineração canadense Belo Sun quer operar aqui a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”, disse ele, diante de um quadro branco naquela noite na chácara em Altamira. Ele havia desenhado um diagrama em forma de S do rio Xingu e, em seguida, destacado o local proposto para este empreendimento. “Essa mina vai tirar ainda mais água do rio”, disse ele.
A certa altura, a dona da chácara, uma ativista do Xingu chamada Antônia Melo da Silva, se levantou e explicou como a mina tinha dividido as comunidades da região, prometendo pagamentos para quem aderisse ao projeto.
“Pior”, ela disse, sua voz atingindo um crescendo, “no mês passado, um jovem que era contra à mina desapareceu e não foi encontrado. Não sabemos quem é essa empresa. Eles nunca mostram quem são.”
Dividir e conquistar, Cullinan pensou consigo mesmo. Ele já presenciou empresas usarem a mesma tática diversas vezes em suas décadas de advocacia. Quando estas empresas conseguem dividir as comunidades oferecendo dinheiro ou outros benefícios para alguns, a resistência ao projeto fica enfraquecida por lutas internas. Maial Paiakan Kaiapó, também juíza do tribunal, ecoou seus pensamentos. Paiakan, uma líder dos Kayapó-Mẽbêngôkre e primeira advogada de seu povo, enfatizou que as comunidades tradicionais precisavam se unir para tentar manter suas culturas e proteger a floresta, que são a mesma coisa.
Pontes explicou as estreitas relações entre todos os níveis de governo e indústria no Brasil. No nível federal, disse ele, legislação pendente permitiria a mineração comercial e outros projetos industriais em territórios indígenas. Outro projeto de lei permitiria uma espécie de “auto licenciamento” para projetos de desenvolvimento que, segundo seus opositores, poderiam multiplicar tragédias como o rompimento das barragens de rejeitos de mineração em Mariana e Brumadinho, que matou mais de 150 pessoas. Esses desastres podem ser uma ameaça para o povo do Xingu, que estaria convivendo com uma barragem de rejeitos semelhante cheia de resíduos tóxicos se a mina de ouro for construída.
Enquanto ouvia, Greene pensou em como uma lei de direitos da natureza poderia elevar os direitos das comunidades vivas – pessoas e ecossistemas – para que tivessem uma melhor chance de lutar contra os interesses econômicos por trás da mina, que estava avançando por um único motivo, para ganhar dinheiro.
Pontes, depois de uma longa carreira como promotor, entendia a conexão entre as pessoas que vivem na floresta e o bem-estar da natureza: Hoje no Brasil, a floresta mais preservada está em terras indígenas, com menos de 1% de suas florestas desmatadas, em comparação com 20,6¨% em terras privadas.
“Os direitos da natureza precisam estar ligados aos direitos das comunidades tradicionais que a defendem”, afirmou Pontes.
Cullinan ao Amanhecer, Peneirando as Evidências
Bem cedo na manhã seguinte, Cullinan, como sempre, foi o primeiro a acordar. Passando por Pontes, adormecido numa rede, foi caminhando por uma estrada de terra em direção ao campo. No ar fresco da manhã, sua mente estava clara e ele estava feliz por ter um tempo para processar os eventos do dia anterior.
A selva florescia em alguns lugares num lado da estrada, apesar de ter sido cortada por madeireiros e fazendeiros. Na distância, um grupo de macacos bugios dava seus gritos matinais. Cullinan, de sandálias, aproximou-se do som. Olhando para a floresta num esforço para localizar os primatas, ele viu um trio de pica-paus e ficou olhando para as copas das árvores por alguns minutos observando os pássaros subirem e descerem.
Cullinan sempre foi apaixonado pelo mundo natural, mas foi um encontro com os escritos do padre católico e historiador cultural Thomas Berry que despertou sua compreensão de que a natureza possui direitos inerentes de existir e se regenerar.
Berry, natural de Greensboro, Carolina do Norte, ensinava que os seres humanos estão interconectados com todas as formas de vida na Terra e que o universo é “uma comunhão de sujeitos, não uma coleção de objetos”. Era uma perspectiva radicalmente diferente do mundo e, para Cullinan, um ponto de entrada para articular as ideias de Berry no âmbito do direito.
Quanto mais Cullinan se aprofundava nos escritos de Berry, mas ele percebia que a ciência respaldava as ideias apresentadas. Albert Einstein, por exemplo, escreveu que os seres humanos são “parte do todo chamado por nós de universo”, mas sofrem de uma “delírio” de separação de outros seres.
Aos 40 anos, Cullinan, então um conhecido advogado ambientalista, publicou “Wild Law”. Uma obra crucial sobre os direitos da natureza, o livro, com prefácio de Berry, apresenta um conceito que Cullinan chama de Jurisprudência da Terra (Earth Jurisprudence) – uma filosofia legal que exige que as leis feitas pelo homem sejam alinhadas com as leis da natureza, como a física. Reconhecer os direitos da natureza, escreveu Cullinan, é um passo para alcançar a Jurisprudência da Terra e a visão mais ampla de Berry de seres humanos vivendo em harmonia com a natureza.
Seu trabalho e o de Berry são fortemente influenciados pelas visões do mundo e ensinamentos de povos indígenas e comunidades tradicionais ao redor do mundo. Cullinan sempre deixa claro que, quando fala sobre seu trabalho, na verdade as ideias que promove não pertencem a ele ou a qualquer outra pessoa.
Ele compara sua jornada com os direitos da natureza à sua experiência como um homem branco nascido na África do Sul sob o regime de apartheid. Ele teve que passar por um processo de desaprender crenças e valores que permeavam sua cultura. Por isso, Cullinan apresenta os direitos da natureza para novos públicos de forma bastante gentil, sabendo que não é algo que a maioria das pessoas pode facilmente entender. A porta de entrada, diz ele, é perceber que existem outras formas de ver o mundo.
Em 2006, apenas quatro anos após a publicação de “Wild Law”, um grupo de advogados americanos adotou as ideias apresentadas no livro e elaborou a primeira lei de direitos da natureza, como parte do código municipal de uma cidade rural do estado da Pensilvânia. A partir daí, o movimento cresceu como uma bola de neve, culminando em 2008, quando o Equador reconheceu os direitos da natureza em sua constituição. Hoje, pelo menos 37 países e vários municípios dos EUA reconhecem os direitos da natureza de alguma forma.
Em 2010, Cullinan desempenhou um importante papel na iniciativa boliviana de redigir a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, uma carta semelhante à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Naquele ano, Cullinan, a ativista equatoriana Greene e outros fundaram a Aliança Global pelos Direitos da Natureza para unir organizações e indivíduos que trabalham na defesa dos direitos da natureza. A aliança incorpora a própria teoria da mudança de Cullinan, que sustenta que mudanças sistemáticas acontecem quando ativistas são capazes de formar laços fortes com uma ampla gama de comunidades e culturas – “como veias em um corpo”, diz ele.
A aliança, preocupada de que os atuais sistemas jurídicos nacionais e internacionais não estejam protegendo o mundo natural, criou o Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza Este tribunal tem assumido casos complicados, desde o derramamento de óleo da Deepwater Horizon até a devastação ambiental causada pelo campo petrolífero Lago Agrio, no Equador, bem como a crise das mudanças climáticas.
Cullinan chegou a uma curva na estrada de terra e ouviu o som de uma motocicleta próxima, que gradualmente foi aumentado. De repente, o momento pareceu tenso. Foi um lembrete de que o trabalho do tribunal não é exatamente aceito por alguns grupos, especialmente em Altamira, uma cidade mais conhecida pela violência de gangues e por ser “amigável a mineração”. Ele deu meia volta.
A Caminho de Marabá, Via Anapu, Cena de um Assassinato
Mais tarde naquela manhã, Cullinan e seus colegas fizeram as malas e embarcaram num ônibus com capacidade para 30 pessoas que Greene havia contratado para a viagem até Marabá, uma cidade siderúrgica a cerca de 480 quilômetros ao sudeste de Altamira. Durante o percurso, o tribunal planejava parar na cidade de Anapu, conhecida pelo desmatamento ilegal e violentos conflitos fundiários.
Para chegar a Anapu, o ônibus rodou pela rodovia Transamazônica, uma estrada de duas pistas que corta a floresta tropical de leste a oeste. Construída durante a ditadura militar de 1964-1985 no país, a rodovia foi projetada para incentivar a exploração da floresta.
A ditadura institucionalizou uma política chamada “Operação Amazônia” para colonizar a Amazônia, com o lema de que a região era uma “terra sem homens para homens sem terra”. Era mentira, considerando a presença de longa data de centenas de povos indígenas.
Ainda assim, a ideia atraiu migrantes do sul e nordeste do país em busca de terras para construir uma vida melhor. Semelhante ao U.S. Homestead Act, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, conhecido pela sigla INCRA, foi criado para ajudar a assentar os migrantes sem-terra. O instituto criou assentamentos ao longo da rodovia onde os migrantes foram incentivados a desmatar a floresta. O processo, como as políticas expansionistas dos EUA, levantou uma questão: se a terra estava sendo tomada à força de seus ocupantes indígenas, mas isto estava sendo feita com base em uma lei escrita pelo governo que a tomava, isso tornava esta ação legal? Ou moral?
Com a junta militar incapaz de atender à demanda por terras acessíveis, a região viu uma explosão de conflitos violentos. Em meados da década de 1970, as políticas da ditadura se voltaram para a promoção de projetos agrícolas e industriais em larga escala, como mineração, levando à consolidação da propriedade da terra nas mãos de famílias ricas e empresas. Hoje, as reivindicações conflitantes sobre a posse da terra e a violência resultante disto permeiam grande parte da Amazônia brasileira. No estado do Pará, onde os juízes estavam viajando, os títulos de terra falsos são tão numerosos que a propriedade que eles cobrem equivale a mais de quatro vezes a área real do estado.
Enquanto o ônibus do tribunal percorria um trecho de terra da rodovia, os juízes tiveram uma visão privilegiada das consequências da Operação Amazônia. Nos dois lados da estrada, pastagens ondulantes com cabeças de gado branco há muito tempo haviam substituído a selva. Sentado no banco da frente ao lado do motorista, Pontes sentiu uma profunda dor no coração. O ônibus estava perto de Anapu, onde em 2005 dois pistoleiros, a mando de um poderoso fazendeiro mataram a tiros uma das melhores amigas de Pontes, a irmã Dorothy Stang, uma freira americana de Dayton, Ohio. O trabalho de Stang com migrantes tentando viver de forma sustentável na floresta tropical e até mesmo regenerar partes que foram exploradas seria a fundação para grande parte do restante da visita do tribunal – e afetaria profundamente o pensamento de Cullinan.
Quando era um jovem promotor federal, Pontes trabalhou em estreita colaboração com Stang para criar um dos primeiros assentamentos de “desenvolvimento sustentável” do instituto federal de reforma agrária. A ideia era dar a migrantes selecionados a propriedade comunal da terra para reflorestar e cultivar de forma sustentável ou através de agroflorestagem.
Stang chegou ao Brasil na década de 1960, quando a teologia da liberação – um movimento católico centrado na melhoria da vida dos pobres – estava se espalhando pela América Latina. Ela desafiou os militares defendendo os pobres e o meio ambiente, que ela via como inter-relacionados e enfrentando as mesmas forças destrutivas. Stang estava procurando ir a montante, assim como Cullinan, para ajudar a proteger aqueles que protegem a floresta tropical.
Seu ativismo acabou custando a sua vida quando, aos 73 anos, ela foi baleada seis vezes no estômago, nas costas e na cabeça a caminho de uma reunião com moradores rurais. Fora o assassino, Pontes foi a última pessoa com quem Stang falou. Sua história foi registrada no documentário de 2008 “Mataram Irmã Dorothy”. Em uma cena, uma jovem Pontes lembra como Stang entrava em seu escritório, abria um mapa, mostrava a ele onde fazendeiros ilegais haviam roubado as terras de seus moradores e exigiam que eles fossem removidos.
Em Anapu, Pontes liderou o tribunal por uma estrada de terra em direção a um encontro para a Romaria anual em homenagem ao legado da freira. Um grupo de jovens tocando instrumentos musicais dava as boas-vindas a todos num caminho que levava a dois grandes pavilhões ao ar livre que haviam sido montados para o almoço, e a comida estava sendo preparada.
Duas colegas de Stang das Irmãs de Notre Dame de Namur, um instituto católico fundado para ajudar os pobres, estavam esperando junto com quatro homens locais. A irmã Jane Dwyer, 82 anos, nasceu em Brighton, Massachusetts, participou da marcha “Eu Tenho um Sonho” de Martin Luther King em Washington em 1963 – o dia em que se tornou freira de Notre Dame de Namur – e tem trabalhado com os pobres no Brasil desde 1972. Irmã Kathryn “Katy” Webster, 70 anos, ingressou na Ordem em Ilchester, Maryland, em 1979 e se mudou para o Brasil em 1984. Ela veio para o Pará para trabalhar com Stang em 1997 e está aqui desde então.
Os quatro homens locais solicitaram que nem seus nomes nem quaisquer fotos deles fossem usados, preocupados com sua segurança. Um deles descreveu a comunidade: Setenta e três famílias, ou cerca de 600 pessoas, vivem em seu “assentamento de desenvolvimento sustentável”, onde cultivam cacau, arroz, milho e mandioca e têm algumas vacas leiteiras. Cerca de 50% de suas terras são florestas intocadas. Mas o assentamento já estabelecido pela comunidade não tem impedido que o proprietário ilegal anterior da terra de ameaçar de forma agressiva as famílias que vivem lá.
“Tivemos quatro casas e uma unidade de produção de farinha queimadas”, disse o homem. “Dez homens armados com espingardas ameaçaram algumas das famílias com crianças. Algumas famílias foram forçadas a ir embora porque os homens estavam atirando para o ar. Ninguém foi preso.”
Cullinan tinha ouvido falar sobre a violência relacionada aos conflitos fundiários aqui na Amazônia, mas sentado na frente desses homens enquanto conversavam aprofundou seu entendimento. Ele viu a tristeza em seus olhos e sentiu algo que parecia rebeldia.
Cullinan perguntou ao homem se sua comunidade tinha direitos legais sobre a terra.
“Sim, mas os fazendeiros estão contra nós. Nosso assentamento é continuamente invadido”, disse ele, explicando que sua comunidade ganhou o título coletivo da terra por meio de uma ação federal.
“Instituições como IBAMA e INCRA nos abandonaram, mas as freiras nos ajudam”, disse ele, referindo-se ao órgão de proteção ambiental do Brasil, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e ao instituto federal de reforma agrária.
Pontes disse que 19 pessoas foram assassinadas na região entre 2015 e 2019, e duas mais recentemente, por conflitos fundiários. “Nenhum caso foi investigado, ninguém levado à justiça”, disse ele.
Outro morador local disse que pessoas que resistem aos fazendeiros e madeireiros tiveram suas orelhas e línguas cortadas. “Um recado para disciplinar a população”, disse ele. “Um menino que morava com a mãe foi morto no Dia das Mães.”
“Essa é a crueldade presente aqui”, disse a irmã Dwyer. “Eles também tentam destruir memórias. Eles cortaram as árvores que a irmã Dorothy plantou na frente de sua casa. Eles pintaram por cima de coisas para apagar sua memória e tornar seu trabalho invisível. Mas as pessoas encontram uma maneira de manter a memória dela viva.”
“Olhe para os jovens”, disse a irmã Webster, olhando para os pavilhões. “Eles nasceram depois que Dorothy foi morta, mas a história dela repercute com eles.”
Em Marabá, Após Depoimentos Dilacerantes, um Vínculo
Em Marabá, na manhã seguinte à espera de uma entrevista coletiva começar, Cullinan conheceu Ana Carolina Altofino, advogada brasileira e juíza do tribunal recém-chegada que estava se juntando ao grupo. Não demorou muito para que os dois advogados formados no Ocidente começassem a conversar sobre os direitos indígenas à terra que desafiam interesses industriais.
“Todas as terras aqui são praticamente terras indígenas”, disse Carolina, uma mulher alta e esbelta de cabelos castanhos curtos e um conhecimento enciclopédico da história do Brasil. Ela agora trabalha para a organização sem fins lucrativos Amazon Watch, dedicada a proteger a floresta tropical e os direitos dos povos indígenas, e tem dedicado anos trabalhando em direitos fundiários na Amazônia.
“Há uma latência: se você olhar com muita atenção, encontrará a memória dos indígenas em todas as terras do Brasil, vestígios de suas pegadas nelas”, disse Carolina.
Ela explicou que a constituição do país de 1988 reconhece os direitos dos povos indígenas de ocupar seus “territórios tradicionais”, uma nova categoria legal que agora é objeto de litígios pendentes no Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Fazendeiros, políticos de direita e outros atores da indústria argumentam que a data em que a constituição entrou em vigor, 5 de outubro de 1988, é um marco temporal: se os povos indígenas não estivessem ocupando fisicamente seu território no momento em que a constituição foi promulgada ou não tivessem disputas judiciais em andamento para reivindicar direitos sobre ela, afirmam, a área não pode ser considerada seu “território tradicional”.
Mas essa visão, disse Carolina a Cullinan, ignora o fato que os povos indígenas já tinham direitos sobre suas terras antes de 1988, bem como a longa e sangrenta história de remoção forçada, matanças e outros tratamentos desumanos usadospara expulsar os povos indígenas de seus territórios. “O movimento indígena e os advogados falam sobre territorialidade para dizer que há algo naquelas terras que mostra sua importância para a vida indígena”, disse ela. “Grupos indígenas dizem coisas como ‘lembramos esse exato rio e como o usávamos’. Isso é uma ameaça para indústrias como o agronegócio.”
Cullinan acenou com a cabeça. “A abordagem ocidental vê a terra como um objeto, mas a perspectiva indígena é relacional”, disse ele. “O que importa não é onde está colocado o pino de demarcação, o importante é qual é a relação com a Terra. Mesmo quando os povos indígenas estão desconectados da terra, sua relação com ela persiste.”
Carolina assentiu com a cabeça. “Você não pode se livrar da virtualidade”, disse ela. “A ferida ainda está lá, por baixo de tudo.”
Após a entrevista coletiva, que começou com uma hora de atraso, um auditório da universidade ficou lotado com lideranças dos estados do Pará e Maranhão que vieram para dar seus depoimentos. Estas lideranças representavam os povos indígenas, os povoados de migrantes e as comunidades quilombolas, formadas por descendentes de escravos foragidos.
Para os juízes, os depoimentos foram dilacerantes: relatos emocionais de assassinatos encomendados e devastação ambiental relacionados a siderúrgicas, ferrovias e usinas hidrelétricas.
Quando terminaram de contar suas histórias, Cullinan sentiu um vínculo e queria que os homens e mulheres com quem havia conversado entendessem que os membros do tribunal, como eles, viam o mundo de maneira diferente da cultura dominante.
“Quando eu estudava direito”, disse ele, “nos disseram que tudo o que precisávamos saber estava na biblioteca jurídica. Eram as leis, eram os casos, era o que os acadêmicos escreveram sobre as leis e os casos.”
“Ninguém nunca mencionou as leis da natureza”, disse Cullinan. “Em outras palavras, todos pareciam concordar que toda a lei vinha dos seres humanos, e você não precisava saber nada sobre como a natureza funciona… Mas o que aprendi com os povos indígenas de todo o mundo é que a primeira lei vem da natureza”.
As formidáveis habilidades de Cullinan como orador, aprimoradas como advogado e ativista, eram evidentes, prenunciando o que viria em seis dias durante suas considerações finais no Fórum Social Pan-Amazônico em Belém.
“Os sistemas jurídicos que temos na maioria dos países se baseiam no entendimento de que os seres humanos são separados da natureza, são superiores à natureza e de certa forma são colonizadores da natureza”, disse Cullinan. “Nossa tarefa é mudar essa percepção.”
Quando ele terminou, o auditório irrompeu em aplausos. Foi um momento fugaz de felicidade, alimentado por um vínculo recém-formado. Mas havia profundezas infernais pela frente.
A Caminho da Mina da Vale, ‘Onde o Problema Começa’
A escala da mina de minério de ferro de Carajás é tão grande, seus abismos tão profundamente escavados na Terra que é quase inconcebível que os humanos a tenham criado.
De propriedade e operada pela gigante brasileira de mineração Vale, a mina fica no centro de uma floresta protegida, aparecendo em fotografias aéreas como uma verruga gigante num manto verde.
Para agendar uma visita à mina, o tribunal teve que concordar em contratar dois guias locais associados à Floresta Nacional de Carajás, uma área protegida com seus limites fiscalizados por guardas armados. Na portaria do parque, os dois guias entraram no ônibus antes que o grupo subisse um morro cheio de curvas cortado pela densa selva.
“Você está na Floresta de Carajás agora”, disse um dos guias. “É uma área de conservação onde a Vale tem o direito de minerar de forma sustentável.”
O ônibus percorreu a cidade da Vale, construída para abrigar seus trabalhadores e suas famílias. Apelidada de “Bélgica Brasileira” pelos moradores, a cidade possui ruas perfeitamente pavimentadas e casas impecáveis. O centro da cidade, que o guia chama de “núcleo”, tem um grande refeitório ao ar livre e piscina, quadras de tênis e outras atividades de lazer.
O ônibus rodou por mais 24 quilômetros pela selva, até que a vegetação de repente deu lugar à terra vermelha bruta – que é a cor do solo rico em óxidos de ferro e alumínio, e parou em um mirante acima de um das cinco principais cavas da mina. O corte era tão grande que os juízes só podiam ver parte dele.
“Parece Mordor,” Cullinan sussurrou para si mesmo, descendo do ônibus e pensando no reino de J.R.R.Tolkien para o malvado Sauron. Ele caminhou até as correntes que separavam as pessoas da mina e olhou para as fileiras de terra escavada. Ele refletiu sobre o minério de ferro retirado da mina e o que a sociedade faz com esses minerais, criando aço para construir pontes, prédios e máquinas. E então ele pensou consigo mesmo, eu sou responsável por isso.
Ele deu alguns passos e se juntou a Pontes e Green.
“Este é um dos principais locais onde o problema começa”, disse Pontes. “A partir daqui, vemos muitos outros problemas como o desmatamento e a violação dos direitos humanos e dos direitos da natureza. Todas essas violações emanam deste lugar. Esta é a origem.”
“Então, quais são as outras coisas que estão causando problemas?” Cullinan perguntou. “A ferrovia, e depois as cidades e as pessoas vindo para a região por causa da mina?”
“Esta é uma mina para exportação”, disse Pontes. “Esta é uma mina que as pessoas dizem que construiu a nova Pequim. Alguns poderiam afirmar que o único impacto desta mina é aqui onde a mina está localizada. Mas isso não é verdade porque eles têm que enviar esses minerais para o porto, e o porto fica a centenas de quilômetros daqui.”
A Estrada de Ferro Carajás que liga as minas da Vale no Pará ao porto no estado vizinho do Maranhão tem cerca de 890 quilômetros de extensão. Os trilhos passam por mais de 100 comunidades.
Pontes observou que a mina ajudou a acelerar o desmatamento. “Vocês se lembram da primeira siderúrgica que vimos quando estávamos saindo de Marabá?” ele perguntou. “Essa usina siderúrgica precisa de carvão para transformar o minério de ferro em ferro-gusa. Então, todas as florestas ao redor de Marabá precisam ser derrubadas para fazer carvão para uso nesses tipos de siderúrgicas.”
“Ahh, agora isso faz sentido para mim”, disse Cullinan, coçando a barba e acrescentando: “Me parece que também há um impacto político de ter uma empresa de mineração tão poderosa aqui?”
“No Brasil, temos uma relação muito forte entre o poder econômico e o poder político”, disse Pontes.
“E ouvimos”, disse Cullinan, “que os interesses da mineração têm uma aliança com os interesses da pecuária, certo?”
“Vamos retroceder um pouco”, disse Pontes. “Eu acho que a principal causa do desmatamento na Amazônia é a rodovia. Porque se você não tem uma rodovia, é muito difícil chegar a áreas remotas. Agora, essa área tornou-se muito favorável à criação de gado, porque o gado pode ser facilmente transportado para os frigoríficos.
“Para a mineradora, é bom não ter povos tradicionais em suas áreas e ter pecuaristas nessas áreas afasta os povos tradicionais e os pobres. Os pecuaristas não são impactados pela mineradora, eles podem trabalhar juntos.”
Um dos guias avisou que era hora de ir embora. Em meio à confusão para voltar ao ônibus, Cullinan perguntou se eles poderiam entrar na floresta. “Ainda não vi nosso cliente”, disse ele melancolicamente.
Alguém traduziu seu pedido para um dos guias.
“A floresta está fechada hoje”, respondeu o guia.
Acelerando pela Noite, um Acerto de Contas
Enquanto o ônibus voltava pela floresta, Cullinan e Greene se debatiam com a ideia de que a mineração de alguma forma continuará a beneficiar os seres humanos.
“Eu não tenho uma resposta para isso”, disse Cullinan, balançando a cabeça, acrescentando que é algo sobre o qual ele já pensou a respeito antes. “Para ser sincero, não acho que a mineração possa ser sustentável.”
Os seres humanos mineram há milhares de anos, observou ele, mas a escala em que a humanidade está fazendo isso agora é problemática. Ele mencionou “Confissões de um Assassino Econômico”, um livro escrito por um ex-economista do Banco Mundial que conta como ele foi obrigado a reescrever análises econômicas até que os números se encaixassem para justificar projetos de extração em países em desenvolvimento. O objetivo era convencer esses países de que os projetos extrativistas os enriqueceriam. Em vez disso, os projetos deixaram esses países endividados junto a doadores internacionais, disse Cullinan.
“Se a única maneira de extrair minério de ferro é devastar a floresta, isso não deveria ser feito”, disse ele. “Acho que os povos indígenas que têm uma relação tão próxima com a terra vão se opor a todo tipo de mineração. É difícil para pessoas como você e eu, que não foram criadas com esse entendimento, compreender isso.”
Ele parou para pensar.
“Acho que a mineração provavelmente é um dos problemas mais difíceis que temos que resolver”, disse ele. Antes de vir ao Brasil, ele tinha lido reportagens sobre a destruição de cidades na Ucrânia pelas forças militares russas. Ele agora achava que a visão dos povos indígenas sobre a destruição da Amazônia poderia ser comparada à maneira como alguns ocidentais se sentem sobre o bombardeio de cidades ucranianas – em ambos os casos, a vida e a cultura estavam sendo destruídas.
Cullinan reconheceu que a humanidade continuaria minerando de alguma forma por muito tempo. Mas ele lamentou a forma como a maioria dos países toma decisões sobre como e onde essa mineração ocorre. Essas decisões, disse ele, produzem “zonas de sacrifício” onde as pessoas que se beneficiam da mineração não são as pessoas que pagam o preço disso.
Greene assentiu. “Já extraímos tanto da Terra; como vamos reciclar tudo isso?” ela disse. “Já extraímos cerca de 80% do ouro da Terra. Grande parte desse ouro está em barras trancadas dentro de bancos. Por que continuamos extraindo mais? As reservas já existem. É absurdo – não faz sentido, causando toda essa destruição.”
“Felício disse que a Pequim moderna saiu desse buraco”, disse Cullinan. “É um pensamento e tanto, não é – quão interconectado o globo todo está?”
Sua pergunta pairou no ar enquanto o ônibus acelerava pela noite em direção à cidade de Canaã dos Carajás, outro campo de batalha.
O Desafio de uma Comunidade, e uma Epifania para os Visitantes
Na manhã seguinte, Blanca Chancosa, líder indígena do Equador e juíza de tribunal, ficou cara a cara com a angústia. Em uma comunidade onde 150 famílias de todo o Brasil cultivam frutas e plantam árvores há sete anos, uma batalha jurídica estava sendo travada.
Cerca de 50 moradores tinham se reunido para se encontrar com membros do tribunal sob o sol quente do meio-dia em uma área sombreada por árvores com muitos papagaios selvagens. Perto dali, do outro lado de uma estrada de terra, havia fileiras de árvores frutíferas numa antiga área de pastagem. Os moradores solicitaram o título da terra sob a lei federal para que pudessem continuar a reflorestar e plantar mandioca, mamão, goiaba e outras culturas no que eles dizem ser terra pública. Mas a Vale, querendo expandir sua vasta mina para aqui, comprou escrituras de fazendeiros e agricultores da vizinhança – escrituras que os moradores alegavam terem sido falsificadas – e estava tentando despejar a comunidade
“A Vale nunca nos mostrou qualquer prova de que eram donos da terra, eles apenas afirmam que são”, disse uma mulher de boné rosa, estendendo os dois braços para fora com as palmas das mãos voltadas para o céu.
Chancosa, 61 anos, travou uma batalha semelhante no Equador. Fundadora da Confederação dos Povos de Nacionalidade Kichwa, Chancosa certa vez chamou a presidente do Equador de “marionete” do Banco Mundial como parte de uma luta política que incluía a defesa dos direitos dos povos indígenas a suas terras. Ela conhecia muito bem a sensação de que a lei parecia ter duas vias, uma para empresas poderosas e outra para todos os demais. E aqui no estado do Pará, no Brasil, ela empatizava com esses moradores que seguiram os processos corretos do INCRA apenas para que a Vale puxasse o tapete deles, processando-os na justiça civil para despejá-los, em vez de agir através da agência de reforma agrária.
“Tudo o que você vê aqui é do nosso próprio esforço”, disse um homem com longos cabelos brancos usando um chapéu de caubói marrom. “As grandes empresas exportam. Nós não. Nós nos sustentamos e vendemos para outras comunidades. Não tivemos nenhum apoio do governo. A Vale quer nos pagar para calar a boca. Mas isso será apenas um grande buraco se a Vale vencer.”
Chancosa escutou quieta, depois se levantou para falar. “É muito emocionante ouvir essas histórias, mas vocês me dão muita esperança”, disse ela. “Proteger a natureza é defender a vida. A Terra nos dá vida. Faço parte de um movimento chamado ‘Floresta Viva’. Proteger a floresta é nos defender.”
Ela fez uma pausa. “Agora. Você pode ter dinheiro ou pode ter terra para plantar e cultivar”, disse ela.
Outra pausa. “Não aceite apenas o dinheiro”, disse ela, antes de se sentar.
Durante uma pausa para o almoço, Chancosa, Cullinan e os outros juízes se reuniram e compartilharam suas impressões. “É isso que as mineradoras fazem”, disse Chancosa. “Elas dividem as comunidades, dividem as famílias. É uma grande ameaça – espero que esta comunidade possa resistir.”
Cullinan comentou: “Quando ouço as pessoas dizendo: ‘Investimos neste lugar e moramos aqui e é por isso que temos a reivindicação mais forte’, acho que é verdade. Mas o sistema jurídico em vigor não reconhece isso.”
“As empresas só se preocupam com as necessidades da empresa”, disse Chancosa. “Isso é muito importante porque a terra não é elástica, a terra não cresce mais terra. É por isso que precisa ser defendida, para os povos e para seus filhos e as crianças que virão depois deles”.
Chancosa, Cullinan e os outros juízes já haviam visitado quatro comunidades que estavam tentando reflorestar a Amazônia de alguma forma. Este trabalho regenerativo impressionou Cullinan, e ele pensou numa ideia. Seria possível restaurar a floresta, e o que seria necessário para isso acontecer? No dia seguinte, ele e os outros juízes descobririam.
Próximo a Marabá, uma Comunidade Desafiadora
Na beira da floresta, a cacica Katia Silene Valdenilson sentou-se num grande círculo no final da manhã com os juízes e contou a história de seu povo, os Akrãtikatêjê. A cerca de 10 metros do pavilhão ao ar livre, pequenas fogueiras controladas queimavam através da vegetação no solo, e a fumaça ocasionalmente flutuava pelo grupo.
A luta começou no final da década de 1960, quando o plano de desenvolvimento da ditadura brasileira tinha como alvo o rio Tucuruí, que fluía pelos 7.000 hectares de território montanhoso do território Akrãtikatêjê, uma “terra de fartura”, disse Silene, 54 anos. Ela vestia calça e blusa com pintura facial tradicional.
Então, uma noite, lembrou Silene, ela e sua família foram jogadas em um caminhão e retiradas à força para dar lugar ao que viria a ser a hidrelétrica de Tucuruí, da Eletronorte, projeto destinado a fornecer energia para as novas minas industriais no corredor de Carajás.
Os Akrãtikatêjê e outros dois povos foram removidos e colocados em uma reserva de terra indígena de 6.000 hectares chamada Mãe Maria. Na época, e até que o Brasil adotasse sua constituição pós-ditadura em 1988, a lei tratava os Akrãtikatêjê e outros povos indígenas como tutelados do estado, semelhantes aos menores de idade. Separados de suas terras, os Akrãtikatêjê tiveram que mendigar comida em Marabá, e muitos adoeceram porque não estavam acostumados a comer alimentos industrializados.
Missionários americanos colocaram as crianças, incluindo Silene, em escolas ocidentais. As crianças foram forçadas a adotar nomes ocidentais e proibidas de falar sua língua nativa. (Hoje, Silene é conhecida como Cacica Katia, embora seu nome de batismo seja Tônkyré Akrãtikatêjê).
No início da década de 1980, sem consultar às três comunidades, a Ferrovia Carajás foi construída passando pelas terras de Mãe Maria. O pai de Silene, Payaré, então cacique de Akrãtikatêjê, de forma desafiadora mudou sua família de volta para sua aldeia tradicional. Ele foi agredido violentamente, disse ela, e forçado a abandonar a terra de seu povo pela segunda vez. Ela gesticulou em direção a um retrato pendurado em uma viga do pavilhão. “Esse é meu pai, Payaré, ele tinha o sonho de lutar pela nossa terra”, disse Silene com um olhar de emoção.
Em 1989, com a ajuda de grupos de direitos indígenas, Payaré moveu um processo que duraria décadas contra a operadora da barragem, a Eletronorte. Em 2008, um tribunal federal determinou que a Eletronorte indenizasse os Akrãtikatêjê com terras comparáveis às que lhes haviam sido tomadas. A empresa demorou mais 10 anos para fazer isto – tempo suficiente para que Payaré nunca visse as 3.640 hectares de terra de uma antiga fazenda perto da reserva de Mãe Maria que seriam escrituradas aos Akrãtikatêjê em 2019. Ele morreu em 2014.
“Estamos reflorestando aquela terra, é assim que estamos curando a Terra”, disse Silene. “Será para as gerações futuras. Eles destruíram a terra e depois deram para nós e nos disseram para usá-la para criar gado. Eles nos ofereceram incentivos para isto. Mas queremos fazer o contrário. Queremos reflorestar. Não poderei ver a floresta, mas talvez meus netos sim.”
Na reabilitação das terras da fazenda, os Akrãtikatêjê plantaram 600 mudas de castanheiras nativas e açaí. Seus membros estão trabalhando com parceiros universitários e de organizações sem fins lucrativos na construção de um poço artesanal e viveiros de peixes. Curar a terra é um meio para eles recuperarem a autonomia desta terra, disse Silene.
Quando ela terminou, Cullinan disse a ela que ver o cuidado que seu povo tem com a Amazônia era como um tônico para o tribunal depois de dias vendo intermináveisdanos ambientais. Em seguida, ele levantou a mão para sinalizar que estava pensando em algo.
“Minha pergunta é sobre como você vivencia a floresta como um ser vivo”, disse ele. “Conheço outras culturas que veem a floresta como tendo uma consciência que pode se comunicar com as pessoas. Você também tem esse entendimento?”
Silene disse que a natureza era um ser que seu povo é capaz de entender e que entende seu povo.
“É como uma veia que corre pelo nosso corpo”, disse ela. “Quando uma árvore é cortada nós sentimos. A árvore está pedindo socorro. Podemos ver através das canções do pássaro e podemos ver o desequilíbrio na natureza agora.”
Chancosa levantou a mão para falar, olhando firme para Silene. “Sua história é a história do meu povo”, disse ela. “É o mesmo sofrimento e ainda está acontecendo com os povos indígenas em todo o mundo. O governo acha que tem o direito de decidir sobre nossas terras.”
Silene acenou com a cabeça para ela.
“Fico muito feliz em ouvir o que você diz”, disse Chancosa. “Seu poder, sua força, você não aceita o que está acontecendo. Nós somos os trabalhadores e precisamos defender a Terra. Nós somos a razão pela qual a floresta ainda está viva, porque nós a protegemos. Minha pergunta é: quantas famílias vivem aqui e que perigos elas enfrentam?”
A primeira parte foi fácil de responder: “Vinte e três famílias e 87 pessoas no total”, disse Silene.
Descrever os perigos era muito mais complicado. Além da ferrovia Carajás, uma importante rodovia e linhas de transmissão da usina hidrelétrica de Tucuruí agora cortam suas terras Mãe Maria, disse ela.
A Vale tem planos de construir uma segunda ferrovia através de suas terras, e a cidade de Marabá está se aproximando deles, disse ela. As três comunidades de Mãe Maria recentemente lutaram contra a instalação de uma estação de tratamento de esgoto nas proximidades.
Silene descreveu como seu povo foi forçado a sair da autossuficiência e a depender de sistemas ocidentais como o uso de dinheiro e o “supermercado do homem branco”. Essa mudança forçada tem tido consequências duradouras, disse ela, tornando mais fácil para empresas conseguirem que comunidades aprovem projetos poluentes em troca de pagamento. Mas seu povo, ela disse, está lutando para manter e reviver aspectos de sua cultura.
“Não é para mim”, disse ela, olhando diretamente para Chancosa. “Estou abrindo caminho para a próxima geração. As mulheres têm duas vezes o poder não só porque têm um nível de energia muito alto, mas porque também estão sempre na linha de frente na luta pelo meio ambiente e suas famílias. Temos todo o poder e este é o nosso trabalho, lutar”
Questões Espinhosas, Sábio Conselho e o Veredicto em Belém
Mais tarde naquele dia, de volta a Marabá, os juízes se reuniram para iniciar suas deliberações.
“O que vocês acham?” Greene perguntou sentada atrás de um laptop prateado. “Devemos tratar os assentamentos indígenas e os assentamentos de migrantes de maneira diferente?”
Não havia uma resposta fácil.
Eles precisavam entender o que haviam testemunhado e começar a elaborar o esboço do veredito preliminar que estava previsto para ser divulgado em dois dias na conferência Pan-Amazônica em Belém. Pontes, devido a uma obrigação familiar, teve que viajar e se encontraria com eles em Belém.
Várias questões-chave já estavam se cristalizando, os direitos à terra sendo o mais espinhoso. Teoricamente, todas as terras amazônicas pertenciam aos povos indígenas. Mas, a realidade hoje era que migrantes, alguns de segunda ou terceira geração, chamavam a Amazônia de lar. E à semelhança dos povos indígenas, esses migrantes cultivavam uma relação íntima com a Terra e se viam como seus guardiões.
Greene enquadrou a questão: “Os povos indígenas que visitamos, essa não é sua terra original”, disse ela. “Eles foram retirados de suas terras. E estivemos em campos de migrantes onde eles não são indígenas. Mas o que está acontecendo com eles agora é semelhante. Está acontecendo com os dois grupos de pessoas.”
Carolina reconheceu a singularidade da luta dos povos indígenas, mas defendeu um julgamento unitário: “Existem os povos indígenas originais. Mas muitas comunidades também chamam a Amazônia de lar. Eles não são indígenas, mas querem preservar suas vidas na floresta. Juntas, essas pessoas podem se tornar mais fortes. A luta pela natureza tem que ser a luta de todas essas pessoas.”
Chancosa pareceu concordar, com uma distinção: “Os indígenas foram deslocados, e isso é um crime. Eles estavam aqui primeiro. Eles são afetados de todos os lados. Mas agora outras populações são afetadas – são todos grupos de natureza da Terra.” Ela chamou a situação de “ecogenocídio”, destruindo a diversidade tanto de ecossistemas como de culturas humanas.
Cullinan concordou que ambos os grupos precisavam de proteção e, quando a discussão se voltou para soluções, ele falou com paixão sobre uma nova ideia sobre a qual ele tinha pensado bastante durante a viagem: a justiça restaurativa.
“Em termos de nossa recomendação, se você olhar para a mesma desde a perspectiva da Mãe Terra, você precisa expandir a Amazônia – não se trata apenas de parar [o desmatamento], trata-se de restaurar a floresta.”
Depois de uma viagem noturna no ônibus até Belém, onde a conferência seria realizada, os jurados se reuniram para uma sessão de estratégia a portas fechadas com Ailton Krenak, renomado líder indígena brasileiro e influente autor. Em 1987, Krenak pintou seu rosto de preto em protesto enquanto discursava no Congresso Nacional do Brasil, e desempenhou um papel crítico na garantia dos direitos indígenas na constituição de 1988.
Em seu livro de 2019, “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, ele escreveu que o pensamento dominante de que os seres humanos “ficam à parte do grande organismo que é a Terra” está totalmente errado. Em seus escritos e discursos, Krenak reage vigorosamente contra “pessoas da cidade” que zombam das formas indígenas de pensar. Para ele, uma cultura que realiza destruição ambiental generalizada de forma proposital não está apenas errada, é psicótica.
Seu conselho: focar no quadro geral do arruinamento sistêmico e coordenado da Amazônia baseada na noção de “progresso”, não em direitos fundiários envolvendo diferentes grupos de pessoas prejudicadas.
E assim, no palco no dia seguinte, com as irmãs Dwyer e Webster sentadas na primeira fila, cada um dos juízes foi responsável por uma parte do veredicto.
Pontes, falando sobre a região do Xingu, recomendou que os executivos e investidores da empresa de mineração canadense Belo Sun, se reúnam cara a cara com o povo do Xingu “para que conheçam o que está sendo feito com seus dólares para investimentos”.
Carolina falou sobre Carajás, detalhando as violações de direitos em cascata decorrentes da mina de minério de ferro da Vale.
Greene disse que se a natureza tivesse voz ativa nas tomadas de decisões nessas áreas, a Amazônia e seus povos estariam mais protegidos: Em seu país, a proteção constitucional dos direitos da natureza tem sido usada para bloquear um projeto de mineração em uma floresta ecologicamente sensível, entre outras coisas.
E, disse Chancosa à plateia, as empresas e pessoas que estão destruindo a Amazônia têm o dever de reparar a floresta e todos os seres humanos têm a responsabilidade de proteger a Terra. “A defesa da natureza não é apenas responsabilidade dos povos indígenas e os pobres. É uma responsabilidade de todos”, disse.
Quando chegou sua vez, Cullinan falou das diversas comunidades que o tribunal havia visitado – suas imagens dançavam em uma tela atrás dos juízes – e novamente voltou à ideia que o cativara desde sua chegada em Altamira, justiça restaurativa para a Amazônia. . “Ao contrário dos tribunais comuns, este tribunal não é para punir as pessoas”, disse ele. “A justiça que buscamos é a justiça restaurativa para restaurar a saúde das relações danificadas entre seres humanos e natureza.”
De pé atrás do púlpito, ele assegurou à multidão, repleta de povos indígenas e tradicionais, que eles estavam certos em ver a natureza como um parente próximo e que o sistema jurídico ocidental estava errado.
“Hoje em dia, nenhum cientista acredita que o mundo é um mecanismo, mas esse pensamento falso ainda continua presenta na lei”, disse ele. “Os direitos da natureza tratam de corrigir essa ilusão.”
A plateia, mais uma vez, irrompeu em aplausos.
Um Pós-escrito: Sentando com as Irmãs
No último dia da conferência, encontrei Dwyer e Webster sentadas na sombra de uma barraca de um vendedor assistindo às apresentações finais no palco ao ar livre. Era uma tarde quente e ensolarada, mas cerca de 10 graus a menos na sombra. Nas proximidades, pessoas procuravam comprar joias elaboradas feitas à mão, pinturas e redes.
De repente, uma multidão começou a se formar na margem do rio Guamá, onde uma barcaça do comprimento de um campo de futebol navegava rio abaixo com pilhas de madeira de um andar de altura. As pessoas na multidão vaiaram e tiraram fotos.
Perguntei a Dwyer e Webster, que estavam disfrutando picolés de frutas locais, se eu podia me sentar com elas. Ao observá-las em Anapu, fiquei impressionada com a força e suavidade de ambas. Eles estão literalmente olhando para o cano de uma arma para defender os pobres e proteger a floresta.
Eu queria saber o que elas acharam da apresentação do tribunal.
“Concordo com tudo o que disseram”, disse Dwyer sem rodeios. “Mas, eu gostaria de ver alguém tentar dizer isso para uma sala cheia de fazendeiros furiosos.”
Este ano, apenas um madeireiro derrubou mais de 1.000 castanheiras protegidas em Anapu e não enfrentou qualquer penalidade por isso, disse ela. Ela e Webster testemunharam violência e crueldade depravadas — tudo impunemente. Fora os assassinos de Stang, nenhuma pessoa tem sido presa.
“Eles podem fazer isso e sair impunes”, disse Dwyer. “Porque você está em um sistema econômico que funciona com lucro e dinheiro. E assim o valor não é a vida humana ou a vida da natureza. O valor é dinheiro.”
Quando Dwyer terminou seu picolé, perguntei se ela tinha visto a barcaça de madeira passar no rio. Por costume, ela me respondeu em português, depois respondeu em inglês.
“Em Anapu, passam 10 barcaças desse tipo por dia”, disse ela. “Quando saem de Anapu, a madeira é ilegal, mas quando chega aqui em Belém, é legal.”
Seus comentários me fizeram lembrar de uma conversa que tive com Cullinan no ônibus no final da viagem.
Ele me disse que seu pensamento tinha mudado desde sua chegada em Altamira. Antes da viagem, ele achava que o desmatamento era uma consequência da passividade do governo – uma espécie de consequência não intencional do não cumprimento das leis ambientais. Mas agora ele via o problema como algo mais deliberado. “Eles querem aumentar a produção e querem que as comunidades indígenas e locais não atrapalhem”, disse ele. “É importante para nós retratar o que está acontecendo como sistêmico. O sistema está configurado para isso.”
Mas isto vai além do Brasil, disse ele, ao sistema global de soberania do estado-nação sobre os recursos naturais. O direito internacional, em teoria, deveria proteger a Amazônia, mas essas leis são criadas pelos estados-nações, que só obedecem às leis internacionais com as quais concordam. E mesmo com governos podendo ver que a falha em proteger a Amazônia é um problema para todos, os estados-nações têm interesse em manter o status quo.
“Estamos diante de uma situação em que a ordem jurídica internacional é totalmente inadequada para lidar com os desafios do século 21”, disse ele. “O que o tribunal está fazendo em algum nível está desafiando esse paradigma. Podemos não ter o poder, mas no mundo das ideias estamos dizendo que precisamos reconhecer as realidades ecológicas e nossa interdependência com a natureza.”